Texto Curatorial

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Criar no abismo da perda – corpo e gesto no fazer de Daniela Schneider

“No centro do seu corpo irrompe um precipício de duas bordas que se tornam estranhas uma à outra. Sobre uma das bordas, a morte, sobre a outra, a vida. 

Aqui o desespero, ali a coragem. Se há balança, nenhum prato pesa mais que o outro.

Se há justiça, ei-la aqui. Morrer apenas o estritamente necessário, sem ultrapassar a medida. Renascer o tanto preciso a partir do resto que se preservou”.

Wislawa Szymborska 

Em “A transitoriedade” Freud escreveu que o luto pela perda de algo que amamos é um grande enigma, um desses fenômenos que em si não são possíveis de serem explicados. Em geral, nossa atitude diante da morte não é franca: por um lado, sustentamos que a “morte é o desfecho necessário de toda a vida” e, por outro, manifestamos a inconfundível tendência de denegar a morte. Até que o insustentável acontece: uma mãe perde o filho recém-nascido. 

Na mostra “O corpo que pariu, o corpo que partiu”, Daniela Schneider apresenta essa questão tão pungente e de teor biográfico, transfigurando a dor em invenção. O enxoval criado para o filho se endereça, agora, ao mundo, e sustenta uma pergunta fundamental: como continuar viva depois de ser tocada de maneira tão brutal pela morte? Da experiência da maternidade do primeiro filho e de sua partida apenas cinco dias após o nascimento, a artista encontra um lugar trêmulo para reconstruir sua relação com tudo ao redor. 

Reduzida ao mais profundo silêncio e ao incontornável, para não cair no colapso total e dilacerante, Daniela se segura no fio que refaz lentamente o sentido das coisas, trava sua batalha e extrai, do real que estraçalha o afeto, o fulgor que ensina sobre o essencial de uma vida. Preparar um enxoval ao filho esperado e entregá-lo ao mundo é escrever o corpo, escrever com o corpo e consentir com o não-sentido e a força da experiência vivida. Diante de um rombo aberto na existência, a artista recolhe da morte o grão de luz que dá sentido à perda e, assim, refaz o extraordinário através de uma espécie de fúria desejante. 

A exposição apresenta um conjunto de fotografias e cinco esculturas em tecido, em crochê em tons de rosa e vermelho – estruturas que tocam as questões vividas e a ambiguidade dos afetos que se presentificam no corpo de uma mulher-mãe. 

Formada em Artes Visuais pela Escola Guignard, em escultura e fotografia, Daniela Schneider é apaixonada pelo crochê, que aprendeu com a mãe e a avó. Nas suas palavras, “para se formar a trama, um ponto nasce a partir do outro, assim como as gerações, e meu trabalho é, também, uma tentativa de honrar minha ancestralidade. Crio formas que, às vezes, lembram órgãos. São formas orgânicas que podem lembrar uma parte do corpo, ou o todo, sobretudo o corpo feminino. É como me relaciono com o meu próprio corpo e, a partir do momento em que convido o espectador a interagir com a obra, tocando ou manipulando, tento despertar reflexões sobre os corpos físico e psíquico”. 

Frente à experiência do nada, a artista encontra a radicalidade do amor. Nesse labirinto, nessa bordadura do vazio, na oscilação à beira do abismo, Daniela escreve com o fio, tocando o absurdo que murmura algo para além de uma enunciação individual. Trata-se da questão do feminino e da maternidade que vai do eu ao outro, do íntimo ao político, se configurando como

uma travessia de estranha densidade poética, produzindo a vida como um texto, uma escritura, uma bordadura. 

Essa bordadura guiada pelo enigma desenha não uma fronteira entre a vida e a morte, mas um litoral e, nesses limites tênues entre a vida e a morte, a artista assimila a coragem de uma geografia rebelde que se amplifica nas esculturas em tons de rosa e vermelho, como vísceras abertas ao mundo. A partir daí ela pode inventar, não exatamente uma história, mas uma memória à margem da língua e, no campo antes inundado pela dor, surge um corpo de trabalhos de fina beleza e delicadeza, um corpo de obras que abrigam o impensável de um trauma. 

Diante do irrepresentável a linguagem entra em pane. E, mesmo assim, Daniela segue no seu trabalho silencioso, tratando de fazer com o insuperável uma possibilidade de inscrição, à altura de uma convocação ética e sagrada. Dos fragmentos de memórias — espécies de murmúrios que capturam a um só tempo o detalhe, o absurdo e o destino — a artista cria obras que balbuciam o espanto e o intransponível da perda: única via possível de abrigar as intransponíveis zonas de opacidade e de seguir. 

Suas esculturas surgem do choque entre a linguagem e o vazio. Quando as palavras parecem não dar mais sentido à dor, a artista decide tatear com as próprias mãos o mistério da experiência da perda. Ela diz: “Após algum tempo comecei a transformar as palavras em uma série de esculturas. A performance e os registros vieram como desdobramento. Através das imagens das fotografias, tento demonstrar os sentimentos externalizados em movimentos de uma performance que vai do amor à dor e de volta ao amor”. Trata-se de um fio estendido no infinito do mundo, no infinito do corpo: o fio da navalha, o fio nervoso que conduz a pulsação, uma forma de sustentar, de pairar sob e sobre o mundo. No movimento do fio, a linha denuncia a existência de um corpo, elástico e humano, habitado pela linguagem. É, também, nossa morada primeira: um cordão nos liga ao ancestral, nos permite respirar e nutrir, engendra a criação de si e do mundo. No fiar incessante e perpétuo encontramos linhas de fugas tão radicais quanto singulares, composições de brechas que possibilitam o movimento por outros e novos territórios. 

Um fio é também a conexão mais profunda com um certo burburinho da infância, rumor que secreta um corpo. Antes do domínio da palavra, a criança desenha uma centena de fios entre garatujas, como uma tentativa de acesso que, talvez, aconteça pelo fio. Depois, a criança aprende a escrever algumas palavras em linha reta, como se estas passassem a ser sustentadas por algum bordado invisível – assim como as esculturas de Daniela Schneider, de onde brota uma constelação de sentidos surgidos dos afetos, dos fulgores e das paisagens da memória. 

No ensaio “Metamorfoses do Corpo”, o filósofo português José Gil ensina que o corpo não mente, ele resiste a esse desejo maquínico de descrição. Escrever o corpo, escrever com o corpo: a rigor, um não difere do outro. Ou melhor, estão imbricados: à violência de um, o outro sempre responde — como se atendendo uma convocação. 

É assim, incorporando as linhas no fio do sensível, criando formas que irradiam a dor e a transmutam, que Daniela Schneider abriga o impronunciável. Através do gesto, ela pode atravessar os buracos e renomear as coisas que, antes, eram pura brutalidade. Um abrigo, uma inscrição, sulcagem da superfície sobre a qual se inscreve uma artista na desmedida do impossível, na ligação aguda do corpo com o imanente e com o transcendente a se escrever e bordar perpetuamente. 

Bianca Dias  

 

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