Texto curatorial

Texto curatorial

por Joyce Delfim

“foi batendo o pé na terra que vovó me ensinou a sambar” 

O conjunto de obras aqui exposto da artista baiana Jessica Lemos propõe a confluência do rural com o urbano. Jessica elege um rural representado por sua ancestralidade e pela mulheridade afro-indígena, evocando a figura de uma bruxa-sertaneja, como em Origem II (2017); e um urbano representado pelo que as periferias (das cidades e das artes) criaram enquanto expressão artística – a pichação e o lambe-lambe. Assim, a artista não escolhe compor com a cidade por uma ode ao urbano ou ao projeto de habitabilidade ocidental moderno que ela significa, ao contrário, ela nos convoca a pisar suavemente na terra. 

Tal proposição, retirada do livro Futuro ancestral (2022) do pensador indígena Ailton Krenak, enriquecida pelos conceitos mobilizados por Jessica em sua obra, sopra e leva meu pensamento para uma infinidade de referências da música brasileira, das palavras de ordem e de leituras acerca da inseparabilidade entre natureza/cultura. Além do samba de roda citado na epígrafe deste texto, trago para conversa uma contribuição do antropólogo Tim Ingold. 

Ingold indica que a presença do asfalto nas cidades permite aos seus habitantes “sustentarem uma ilusão de falta de chão, como se eles pudessem atravessar as calçadas sem estabelecer qualquer contato com, ou impressão sobre a terra”1. Essa superfície rígida cria a ideia de que a vida humana é encenada sobre um ambiente, entendido como cenário em vez de partícipe, reforçando assim o dualismo natureza/cultura. 

Em Travessia (2020), Jessica atravessa um “portal” encontrado acidentalmente numa mata nos arredores da casa de sua tia, no sertão baiano, e compreende essa passagem como um rito de superação da divisão terra/corpo (natureza/cultura). Aqui, são justamente o tatear e o pisar o solo que permitem a permeabilidade de seu corpo com a terra – ações, num primeiro momento, anuladas quando pisamos no asfalto, mas com a potência de serem retomadas nas cidades a partir de intervenções que instauram rachaduras nos muros e pavimentos, como os lambe-lambes e pixos realizados pela artista. 

A obra de Jessica Lemos também carrega lembranças de sua infância, quando suas tias se reuniam para raspar mandioca. É durante o retorno à casa de sua tia e no encontro com sua família e sua ancestralidade que Jessica se reconecta com o cultivo da mandioca. Se, por um lado, a artista reverencia a transmissão dos ensinamentos do manejo da planta através das gerações, chegando até suas tias e primas, por outro, não esquece a colonialidade das plantações e dos engenhos. 

Em Apagamento (2021), Jessica produz seis cópias fotográficas de uma reprodução da pintura Engenho de mandioca (1892) de Modesto Brocos. Na pintura, em lugar de representar as pessoas negras num momento de conversa ou canto, afirmando a Casa de farinha como um tempo-espaço de transmissão de saberes e resistência, Brocos escolhe representá-las cabisbaixas, encerradas no seu ofício e sem subjetividade. Em oposição a tais perspectivas racistas e à representação dos “tipos nacionais” difundidas nas obras do pintor e de outros artistas do século XIX, Jessica elabora a série Raíz de vênus (2021). Enquanto Apagamento expõe a queima gradual de uma visão racista e objetificante sobre pessoas negras, Raíz de vênus registra a composição de um antídoto a tais violências. Num cenário montado pela artista, ela se senta, ergue a cabeça, mira ao lado e se autorretrata vestindo um bustiê-colar de mandiocas. 

A sobreposição do bustiê-colar com os seios, melhor observada em Tudo que a boca come (2021), sugere uma analogia entre o peito que amamenta e a raiz que alimenta. A mandioca-mãe, base da soberania alimentar de tantos povos tradicionais de Abya Yala, oferece ensinamentos sobre ser veneno ou cura, brava ou mansa. E, as diversas narrativas sobre a sua origem, presentes nas cosmologias indígenas pindorâmicas, parecem uma boa forma de encerrar este escrito. 

Muitas dessas histórias versam sobre uma criança que pede para ter parte de seu corpo enterrado ou que morre repentinamente e é enterrada. Por meio do cuidado com a terra, o corpo da criança torna-se uma raiz, que é colhida e nomeada mandioca. Essa transmutação exprime a interligação entre falsos opostos que Jessica busca e nos apresenta nesta exposição. Em vez de separados, grafemos: campocidade; centroperiferia; corporaiz. 

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