Conviva com a palavra durante alguns dias.
Deixe que se misture em seus gestos, que passeie
pela expressão dos seus sentidos.
Viviane Mosé, Receita para lavar palavra suja, 2004.
Ao propor o lugar na palavra, a artista visual gaúcha Fernanda Fedrizzi se encarrega de desdobrar em novas visualidades a mesma materialidade com que faz o seu processo poético ser instaurado como uma longa elaboração sistemática e reflexiva sobre o conceito de lugar. Falar de novas visualidades em seu trabalho é levar em conta que redisposição e reposicionamento de seus trabalhos em novos contextos são situações relevantes para sua pesquisa sobre o lugar, porque pressupõe que não apenas a fisicalidade espacial é preponderante, mas que o elemento temporal demarca novas rearticulações causadas pelo deslocamento da experiência artística através da leitura e manipulação em publicações de artista para uma tomada da arquitetura do espaço expositivo. Essa constante migração que faz do deslocamento a ação primordial por espaços da cidade, pela paisagem, através do processo investigativo, com o uso transitório do próprio corpo é possível de ser indicada em seus procedimentos, pois a artista dialetiza diversas polarizações que são estabelecidas de modo, muitas das vezes, a preservar arbitrariamente certos domínios de poder em seus respectivos territórios.
Seu trabalho oferece reavaliações entre obra original e meios reprodutivos, quando pensa a disseminação em diferentes espaços do local mesmo de sua obra; obra finalizada e produção poética em progresso, em que tal instância poética entretida tem o poder derivativo – tal qual as palavras – de se transformar uma vez mais, a partir de rearticulações da forma e formatos para a melhor comunicação de seu conteúdo nos novos contextos dentro dos quais se emolduram. Aqui objeto e sujeito são redimensionados segundo a intermediação da arquitetura para recepção de sua obra. Joga com as intersecções entre materialidade e imaterialidade, de igual modo, em sua série de cartazes Queria, de 2023, quando ao rearticulá-la em uma ampliação no espaço, torna expresso corporalmente suas decisões não apenas – a nível cromático – das cores, a nível tipográfico – das fontes de suas palavras que comunicam desejos, como também, a nível diagramático – as áreas de branco que diagramam silenciosamente seus textos, pendulando em momentâneas indecisões propositivas ao público o que é verbal e o que é visual.
Os domínios do que é háptico e do que é visual também são reposicionados nesta exposição através de diferentes instâncias da legibilidade: ao nível do olhar, da leitura e de algo a ser demonstrado, quando, como exemplo, setenta e duas Notas de pensamentos vagos, de modo inédito, são dispostas em grade na parede – liberadas –, ao mesmo tempo que, – confinadas –, sobre uma prateleira abaixo, uma pequena caixa de papel se abre, ao nível do tatear e da descoberta, para as mesmas notas disseminadas ao bel prazer dos dedos. Esse jogo entre o abrir e fazer disseminar no espaço exterior o que era constitutivo do dentro é apostado pela própria artista, sendo capaz de fazer apenas com papel que se dobra em si – material esse que não possui nem dentro nem fora, mas anverso e verso – um gesto entre escultura e arquitetura do acaso lançado para dentro de seu processo artístico.
Ao adentrar ao espaço da Piccola Galeria, mais que a uma exposição, verdadeiramente penetra-se na coexistência de duas instâncias complexas – abraçadas, capturadas, inscritas, grampeadas – na flexão de um paradoxo constituído ao envolver duas grandezas – palavra e lugar – sob o olhar da minúcia. Em um primeiro momento, em “o lugar da palavra”, presenciamos engendramentos de resoluções derivativas do que as palavras, entre elas a palavra lugar – insistida aqui como central –, são capazes de produzir situações ao se disseminarem, existindo sobre diferentes instâncias e resistindo aos tempos: dentro de diversas línguas – lugar, lieu, lluogo, lloc, passando por diferentes estatutos de uso – lugar, local, deslocar, por diversos gêneros de escrita – a glossário, como em Expressões para marear, originalmente de 2020, ou a lista levantada enfaticamente, como em Inventário de possibilidades orientadas pelo/ao lugar, de 2023, até sintetizar generosamente a palavra lugar segundo seu conceito, através de suas expressões, articuladas em suas frases, passando pelos modos verbais, entre eles o subjuntivo que dá chave para expressar os desejos, as hipóteses, as irrealidades como possibilidade poética: “queria ver palavra virando poesia”.
Ao mesmo tempo, finalmente, em “o lugar na palavra”, habitamos uma inquietante situação em que Fernanda Fedrizzi nos propõe: permanecemos dentro da instalação materializada de como o próprio lugar toma como espaço construído daquilo que não possui materialidade própria: a palavra em sua radical existência contraditória e sua imaterialidade radical, mesmo na palavra lugar. Às voltas com os lugares das palavras, descobre-se a sua incidência insistente – presente como sintoma na poética da artista – entre uma existência imaterial capaz de ser expressar lealmente nos inúmeros suportes e superfícies de espaços que lhe dão abrigo e uma materialidade inexistente impressa na potência de ir até os confins do mais limítrofe e limiar dos tempos em passagem e fielmente impressionar por sua vocalidade fantasmaticamente projetiva, até mesmo no mais inaudível sopro do inaudito.
Portanto, ao buscar o lugar na palavra, auscultaremos o invisível som do próprio espaço, ao mesmo tempo que presenciaremos o seu sinal de vazio, como palavra, como lugar e como conceito. Contudo, se inquirirmos pelo lugar da palavra, a sua presença, o seu cheio, a sua letra, a sua cor e a impressão de seu relâmpago que se enraíza em nossa mente descolar-se-ão das paredes e em nossa direção, em sinal de interrogação, comunicando-nos enigmaticamente:
Sou o fantasma da cidade
surjo das ruelas
de toda e qualquer redondeza
planando sobre o chão ritualizado pela sujeira
a um simples chamado.
Fercho Marquéz-Elul, Fantasma-muro, 2023.
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